A ideia de sustentabilidade

Atualmente, o termo sustentabilidade é alvo de processos conturbados e indefinidos de conceitualização. Para muitos, a polissemia relacionada ao termo é promotora de ambiguidades e contradições. Nossa hipótese, contudo, é de que uma distinção entre as noções de ideia e conceito pode ajudar a dissipar esta confusão e orientar-nos de modo fértil, mas não isento de desafios, a uma reflexão epistemológica capaz de identificar alguns elementos necessários para a construção de uma metodologia capaz de lidar com a complexidade envolvida em problemáticas relacionadas com a sustentabilidade.

Para tanto, realizaremos uma breve exploração da literatura especializada identificando algumas dimensões e fatores relacionados com o conteúdo da ideia de sustentabilidade, deixando de lado, para o momento, qualquer tentativa de mapear exaustivamente toda a complexidade envolvida. Neste sentido, serão observadas as seguintes etapas:

  1. apresentaremos um breve histórico da ideia de sustentabilidade;
  2. delinearemos uma distinção entre ideia e conceito;
  3. exploraremos algumas dimensões e fatores relacionados ao conteúdo da ideia de sustentabilidade e algumas implicações epistemológicas que possam nos orientar na escolha e utilização de uma metodologia apta a lidar com a sustentabilidade sem que percamos de vista a plenitude de sua complexidade.

Breve histórico

Segundo o pesquisador alemão Ulrich Grober, o termo alemão nachhaltende refere-se de maneira muito próxima ao que hoje chamamos de sustentabilidade. Ele foi utilizado pela primeira vez pelo alemão Hans Carl von Carlowitz (1645-1714) em seu livro Sylvicultura Oeconomica, um manual de economia florestal publicado em 1713. Preocupado com o descontrole na exploração de madeira, ele chamou a atenção para a necessidade de uma perspectiva administrativa de longo prazo, de modo que o processo de crescimento e corte das árvores se desse de forma equilibrada, preservando, assim, a utilização do recurso (GROBER, 2012). Nas palavras de Carlowitz:

Como tal, uma Conservação e cultivo de madeira podem ser providencia- dos de modo a tornar possível um uso contínuo, estável e sustentável ("eine continuirliche beständige und nachhaltende Nutzung"), já que esta é uma necessidade indispensável, sem a qual o país não pode manter sua Existência (von Carlowitz 2000 apud GROBER, 2012, p. 83–84,tradução nossa).

Mas foi a partir da década de setenta que a utilização do termo começou a ganhar popularidade, até então sem precedentes. Em 1971, a Organização das Nações Unidas realizou o Encontro de Founex para discutir o atual modelo de crescimento econômico, que caminhava juntamente com a degradação dos recursos naturais (SACHS, 2002,p. 48). Na sequência, a chamada Conferência de Estocolmo, realizada em 1972, teve por objetivo discutir a questão de forma mais ampla. Numa tentativa de resposta aos desafios lançados naquela ocasião, surge o conceito de eco desenvolvimento, proposto por Maurice Strong, então diretor executivo do recém-criado Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que posteriormente ganhou formulação teórica através do economista polonês radicado no Brasil Ignacy Sachs (DA VEIGA, 2005; LEFF, 2009; PAULISTA; VARVAKIS; MONTIBELLER-FILHO, 2008, p. 67).

Desde então, foram realizadas diversas outras conferências1, incluindo a RIO-92 e a RIO +20, que estimularam importantes discussões sobre o tema em nível nacional. Há hoje percepções diversas acerca da existência e da dimensão do problema ambiental, e o conceito, que passou a ser chamado desenvolvimento sustentável, ou, simplesmente, sustentabilidade, adquiriu alta carga semântica e diversas aplicações e propostas que transcendem a questão ambiental, formando um espectro que vai desde a elaboração teórico-científica de inúmeras disciplinas, passando pela propaganda política, até a sua utilização como estratégia de marketing para obtenção de recursos financeiros. Todavia, segundo o antropólogo brasileiro Antônio Carlos Diegues, a questão de fundo relacionada com a sustentabilidade, ou conceitos correlatos – como o de sociedades sustentáveis, em seu caso específico – permanece válida, afinal:

Como construir sociedades ecologicamente e socialmente justas? […] Com opções econômicas e tecnológicas diferenciadas, voltadas principalmente para o “desenvolvimento harmonioso das pessoas"e de suas relações com o conjunto do mundo natural (DIEGUES, 1992, p. 29).

Para Sachs, o notável é que desde as conferências da década de 1970, a sustentabilidade consolidou-se cada vez mais na agenda internacional, promovendo uma considera- ção global acerca da questão ambiental e, com ela, “consequências éticas e epistemo- lógicas de longo alcance, as quais influenciaram o pensamento sobre o desenvolvimento”(SACHS, 2002, p. 49, grifo nosso).

‘Ideacionando’ a sustentabilidade

Devido a sua atual influência, há quem considere a sustentabilidade como uma ideia-força (BRUNSTEIN; RODRIGUES; SCARTTEZINI, 2012; KANASHIRO, 2010; TEODÓSIO; BARBIERI; CSILLAG, 2006). O termo idées-forces foi cunhado pelo filósofo francês Alfred Fouillée (1838-1912) com base na hipótese de que algumas ideias pos- suem tal capacidade de penetração na consciência humana que alcançam “a mais íntima esfera da vontade”(GOOD, 1993, p. 8, tradução nossa), motivando-a e inspirando-a de tal forma que a conduz, assim, à ação no mundo real. Elas possuem, portanto, um caráter inspiracional diferenciado. De acordo com Mora e Terricabras, para Fouillée “a idéia não só pode ter uma força, mas pode ser ela mesma uma força”(MORA; TERRI- CABRAS, 1994, p. 1419, grifo do autor). Neste sentido, explica o pesquisador Robert Good, elas podem ser “úteis como uma ferramenta de análise psicológica, mas duvidosas se elevadas ao status de realidade ontológica”(GOOD, 1993, p. 9). No presente trabalho, portanto, compreendemos as ideias, stricto sensu, como “aquelas formas do pensamento através das quais nos aproximamos e que transcendem os limites de um alcance conceitual”(STRAUSS, 2009, p. 195).

Neste sentido, ideias são mais vagas e mais abrangentes que conceitos. Com efeito, nossa hipótese é de que o tratamento da sustentabilidade como ideia pode dissipar contradições e ambiguidades que surgem nas diversas tentativas de conceitualizá-la, liberando, assim, seu potencial heurístico, proporcionando de modo fértil, num segundo plano, operacionalizações teóricas e empíricas a partir de seu conteúdo. Deste modo, para o momento, interessa-nos mais explorar sua abrangência que delimitá-la de modo exclusivo.

Qual é então seu conteúdo? No início da década de noventa, o pesquisador indiano Sharachchandra M. Lélé observou que o termo sustentabilidade pode assumir conotações sociais, quando se re- fere à “sustentação da base social da vida humana”(LÉLÉ, 1991, p. 608, tradução nossa); ecológicas, quando diz respeito à “sustentação da base ecológica da vida humana”(LÉLÉ, 1991, p. 608, tradução nossa); ou, ainda, num sentido literal, significar a “sustentação de qualquer coisa”(LÉLÉ, 1991, p. 608, tradução nossa).

Ora, daremos sequência a nossa exploração considerando exatamente esta última conotação, a mais abrangente. Segundo Lélé, “qualquer discussão sobre sustentabilidade deve primeiro responder às questões: ’Sustentar o quê? Para quem? Por quanto tempo?’"(LÉLÉ, 1991, p. 615, tradução nossa). Com base neste raciocínio, acrescentamos: Quais fatores e dimensões estão envolvidos? É o que nos propomos a explorar agora.

Dimensões e fatores envolvidos

Como vimos, não há consenso acerca de um conceito único para a ideia de sustentabilidade, também não há estratégia exclusiva para alcançá-la e, tampouco, acordo sobre a percepção do real impacto causado pela degradação do meio ambiente em nível global. Todavia, parece não haver dúvidas de que modelos desenvolvimentistas que visam apenas ao crescimento econômico são agora confrontados com o esgotamento de recursos naturais, altos níveis de poluição e intensificação das desigualdades sociais (DE SOUSA SANTOS, 2005, p. 56). Há quem se refira à atual situação como resultado de uma crise múltipla, cuja dimensão traduz-se em tensões que afetam diversas áreas da vida humana e dos ecossistemas que as fundamentam (COMPAS, 2007, p. 53; MORIN, 1977, p. 56).

Segundo Leff, a problemática ambiental é fruto de uma “crise de civilização: da cultura ocidental; da racionalidade da modernidade; da economia do mundo globalizado”(LEFF, 2006, p. 15). Ela é consequência de uma forma de pensar que exclui natureza, cultura e subjetividade de seu núcleo duro (LEFF, 2006, p. 263), e que abrange tanto a morte entrópica do planeta quanto a simbólica da humanidade (LEFF, 2006, p. 249). Portanto, o reconhecimento de que os atuais modelos de produção precisam incorporar princípios de preservação de recursos naturais para as gerações atuais e futuras é importante, e quanto a isso parece haver algum consenso (OLIVEIRA, 2006; PAULISTA; VARVAKIS; MONTIBELLER-FILHO, 2008; SACHS, 2002, 2004). Mas, é necessário agregar a isto diversas outras dimensões e fatores (LÉLÉ, 1991, p. 618).

Partindo-se, então, de uma ideia de sustentabilidade que envolva desenvolvimento econômico fundamentado em recursos ambientais renováveis, diversas propostas de inclusão de outras dimensões e fatores são apresentadas como pertinentes. Chamando atenção para a relevância intrínseca da dimensão cultural, Enrique Leff argumenta que:

A sobredeterminação que exerce a dinâmica do capital sobre a transforma-ção dos ecossistemas e a racionalidade do uso dos recursos naturais está sempre condicionada por práticas culturais de aproveitamento dos recursos que medeiam as inter-relações entre os processos ecológicos e os processos históricos (LEFF, 2009, p. 98).

Leff também ressalta a importância da dimensão ética, estruturada em torno dos princípios de um saber ambiental, cujo objetivo deve ser o de promover a construção de um conhecimento que viabilize a abordagem das inter-relações entre ordem natural e simbólica. Segundo ele, esta ética pode orientar a construção da sustentabilidade instaurando um diálogo transdisciplinar de saberes fundamentado na dialógica da outridade2, que contempla diferentes formas de “significar e de dar valor às coisas do mundo”(LEFF, 2006, p. 249). No mesmo sentido, Sachs sugere a importância das dimensões social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e internacional, cada qual com diversos fatores a elas relacionados, como, por exemplo, distribuição justa de renda, equilíbrio entre tradição e inovação, utilização limitada de recursos não renováveis, respeito à capacidade de autodepuração dos ecossistemas, superação de disparidades inter-regionais, desenvolvimento intersetorial equilibrado, coesão social, gestão do patrimônio global (SACHS, 2002, p. 85–88).

Segundo ele, essas dimensões e fatores compõem três pilares do desenvolvimento sustentável: a relevância social, a prudência ecológica e a viabilidade econômica (SACHS, 2002, p. 35). No caso específico da agricultura, a sustentabilidade envolve fatores como otimização da produção com redução de insumos químicos, retorno adequado aos produtores, satisfação das neces- sidades humanas de alimentação e renda, atendimento das necessidades das famílias produtoras (EHLERS, 1996, p. 112).

Além disso, é necessário considerar “o controle da erosão de solos, a rotação de culturas, a integração da produção animal e vegetal e a busca por novas fontes de energia”(EHLERS, 1996, p. 112). Para o IBGE (2004), é necessário incluir a dimensão institucional em que se dão as articulações políticas necessárias à implantação das soluções demandadas pela questão. Outros apontam a importância das dimensões legal e psicológica (PAULISTA; VARVAKIS; MONTIBELLER- FILHO, 2008), da ética e da cidadania (DE RAADT, 2002), espacial e geográfica – que contabilizam as disparidades socioeconômicas entre países dos hemisférios Norte e Sul – além da importância da educação e da observação dos direitos humanos (UNESCO, 1999). Após considerar o trabalho de diversos autores, a pesquisadora italiana Patrizia Lombardi afirma que a sustentabilidade, em meio a muitos outros fatores, envolve:

Perspectiva de futuro; equilíbrio e isenção de conflito; equidade; solidariedade e compartilhamento; oportunidades iguais para todos (incluindo empregabilidade); democracia e participação; regulamentações e gerenciamento; direito de posse; beleza; estilo arquitetônico; caráter artístico e significado; eficiência, poder de compra; utilidades e funcionalidade; pluralidade e coesão (sociofilia); garantia; segurança; privacidade; comunicação e rede; colaboração; patrimônio cultural e conservação; tecnologia e mudança; diversidade; diversidade funcional; flexibilidade; adaptabilidade; educação e conhecimento; saúde e higiene; vitalidade; ambientalismo; prosperidade; recursos naturais; viabilidade; trans- porte; mobilidade; acessibilidade; disposição e forma; densidade; e questão ecológica (BASDEN; LOMBARDI, 1997, p. 477, tradução nossa).

Segundo os pesquisadores Donald e Veronica De Raadt, a sustentabilidade envolve necessariamente o tratamento de questões normativas complexas, afinal (DE RAADT, 2000, p. 18, 2002, p. 4):

  • o que é uma boa comunidade?
  • Que tipo de pessoas devemos ser?
  • O que deve ser feito, ou não, com nossas vidas e o ambiente no qual vivemos?
  • De que maneira uma comunidade sustentável deve servir a seus moradores de modo que, como retorno, estes possam nela trabalhar e desenvolvê-la?

Para Sachs, por exemplo, a questão ambiental envolve o “imperativo ético”(SACHS, 2002, p. 67), que implica em respeito e conservação da diversidade da natureza, além de solidariedade sincrônica e diacrônica, para com as gerações atuais e futuras (SACHS, 2002, p. 67). Neste caso, quais políticas públicas devem ser estabelecidas para que os objetivos desejados sejam alcançados? No que tange aos agentes sociais, quais mudanças comportamentais e éticas são necessárias? Neste sentido, o pesquisador argentino Francisco Casiello reforça a importância do “modificar o objeto de estudo”(CASIELLO, 2011, p. 24, tradução nossa), considerando que uma importante etapa da pesquisa é o ingresso no terreno político.

Há também quem chame atenção para a relevância da dimensão espiritual e humana (COMPAS, 2007), que englobam crenças religiosas e outros fatores normativos que variam em sua relação direta com distintas visões de mundo. Segundo Leff, tradições, mitos, ritos e religião fundamentam princípios éticos e valores que de maneira complexa fornecem “coerência e sentido às diferentes formas de organização cultural”, que, por sua vez, orientam sistemas produtivos e tecnológicos (LEFF, 2006, p. 327, 2009, p. 99).

Esta orientação, portanto, pode promover, de modo direto ou indireto, a utilização de recursos socioambientais de modo sustentável ou não. Com base nessa percepção, a pesquisadora holandesa Martine Vonk (2012) conduziu uma pesquisa em meio a comunidades cristãs Beneditinas, Amish, Franciscanas e Huteritas, e identificou valores como vida comunitária, estabilidade, moderação, humildade, ritmo de vida e reflexão. Sua conclusão é de que embora não haja relação direta entre esses valores e a formação de hábitos promotores de baixo impacto ambiental, eles seguramente se convertem em fatores como foco em qualidade e não quantidade, mudança reflexiva e valorização da vida comunitária – em detrimento do individualismo contemporâneo, valores que podem ser incorporados à ideia de sustentabilidade com o objetivo de promover diretamente melhorias na qualidade de vida.

Em última instância, as crenças religiosas corroboram para que indígenas3, cristãos, budistas, muçulmanos, humanistas seculares e ateus4 percebam e construam relações entre natureza e sociedade de modo distinto; portanto, é indispensável considerá-las criticamente em meio aos demais fa- tores que compõem a sustentabilidade. Um exemplo disso é a realização de diversas conferências internacionais voltadas para a discussão da questão da sustentabilidade e da relação entre diversas religiões e ecologia (MAÇANEIRO, 2011, p. 186–188). Mesmo assim, segundo o antropólogo americano Clifford Geertz, a relevância da religião muitas vezes é negligenciada no estudo e na compreensão da sociedade em seus conflitos e problemas5 (GEERTZ, 2001).

Implicações epistemológicas

Focalizaremos, agora, algumas implicações epistemológicas envolvidas no trata- mento teórico das diversas dimensões e fatores envolvidos na ideia de sustentabilidade. Para tanto, consideraremos brevemente:

  • A relação sociedade-natureza;
  • A necessidade de uma abordagem qualitativa da sustentabilidade;
  • O diálogo de saberes;
  • A necessidade de um diálogo tanto transdisciplinar quanto intradisciplinar; v) e, finalmente, a importância metodológica da questão das origens.

Sociedade e Natureza

Em suas obras, autores clássicos da sociologia como Marx, Durkheim e We- ber não abordaram stricto sensu a questão ambiental presente na relação sociedade- natureza, tema fundamental para a compreensão da sustentabilidade. É óbvio que essa problemática não fazia parte da agenda científica, política, social e econômica do contexto histórico em que viveram; todavia, os pressupostos que eles utilizaram em suas teorias geraram implicações para o tratamento das especificidades desta re- lação no contexto em que vivemos hoje. Há uma importante questão aqui, pois tanto no materialismo histórico de Marx, quanto no positivismo de Durkheim e, ainda, na sociologia compreensiva de Weber, o que se percebe, de modo geral, é a manutenção de dicotomias como agência/estrutura, indivíduo/sociedade, sociedade/natureza.

O problema é que este legado teórico foi herdado, com suas riquezas e limitações, pelos pensadores posteriores a eles. Segundo o sociólogo alemão Niklas Luhmann, a teoria sociológica contemporânea encontra-se em crise, pois até os dias de hoje os autores clássicos continuam a ser referência fundamental. Para ele, isto pode indicar um esgotamento da sociologia nesses autores6 (LUHMANN, 2011, p. 35). Para o sociólogo inglês Anthony Giddens, atualmente a sociologia está dividida entre teorias objetivistas ou hermenêuticas (GIDDENS, 2003).

Para o sociólogo brasileiro Dimas Floriani, uma melhor abordagem da sustentabilidade envolve o desenvolvimento de uma epistemologia socioambiental, que seria responsável pelo tratamento:

Das condições de produção e de acesso ao conhecimento, em territórios de fronteira demarcados pela existência de objetos complexos, que exigem uma atitude deliberada na formulação e no uso de diversos conhecimentos (científicos e culturais) para pensar e agir no domínio da relação sociedade-natureza (FLORIANI, 2009, p. 12).

Isto implica uma sociologia que supere a dicotomia sociedade/natureza, contemplando suas inter-relações. Neste caso, é necessária uma “reconstituição da trajetória teórica e metodológica dessa sociologia especial, por meio de um diálogo renovador entre ciências naturais e sociais”(FLORIANI, 2010, p. 148).

Uma Abordagem Qualitativa

O tratamento teórico da sustentabilidade requer metodologias capazes de incorporar uma abordagem qualitativa das dimensões e fatores envolvidos. Todavia, isto não significa, de modo algum, o estabelecimento de uma contraposição entre números e letras (PIRES, 2008, p. 49), entre objetivismo e hermenêutica. Para Pires e Poupart (2008), é a natureza dos dados que pode ser quantitativa ou qualitativa.

Neste sentido, tanto a precisão numérica quanto a descritiva podem ser utilizadas como instrumentos de aferição, ambas podem ser tratadas e organizadas dentro de uma perspectiva epistemológica que privilegie a quantidade ou a qualidade dos dados obtidos. Isto significa que até mesmo entrevistas abertas e observação participante podem ser tratadas de modo quantitativo.

A abordagem qualitativa é importante na medida em que permite uma “construção progressiva do próprio objeto de investigação”(PIRES, 2008, p. 89) e, com efeito, viabiliza uma percepção mais sutil de contextos complexos, pois possibilita a utilização combinada de diferentes técnicas de coleta de dados durante o processo de pesquisa. Deslauriers e Kérisit (2008) concordam que a abordagem qualitativa permite a exploração e o aprofundamento de fenômenos complexos identificando sujeitos, práticas, processos organizacionais envolvidos. Neste caso, ela permite uma avaliação da dimensão política envolvida e uma explicitação tanto dos sujeitos pesquisados quanto as intenções do próprio pesquisador, dando “conta tanto do objeto ’vivido’, como do objeto ’analisado’"(DESLAURIERS; KÉRISIT, 2008, p. 131). Em suas palavras:

Sua proximidade ao campo no qual se tomam as decisões e onde se vivenciam as repercussões regionais, familiares e individuais das políticas sociais globais; sua capacidade de considerar os diferentes aspectos de um caso particular e relacioná-los ao contexto geral; sua capacidade de formular proposições ligadas à ação e à prática. Essas vantagens fazem com que a pesquisa qualitativa seja cada vez mais utilizada, quando se trata de analisar as políticas sociais e avaliar seus efeitos concretos (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2008, p. 131).

Deste modo, uma abordagem qualitativa abre inúmeras possibilidades de investigação da sustentabilidade e viabiliza a consideração da ’voz dos diversos agentes’ envolvidos em conjunto com as percepções dos próprios investigadores.

Diálogo de Saberes

Dado o caráter multidimensional da sustentabilidade e o fato de que traz em seu corolário a demanda por um novo modelo de sociedade, fica clara a necessidade de um diálogo de saberes, que, por sua vez, requer novos paradigmas epistemológicos que possam fundamentar uma melhor compreensão das dimensões, fatores e inter-relações envolvidos e que sejam capazes de fundamentar intervenções sociais promotoras de sustentabilidade. Segundo De Raadt (2000), a lei da complexidade, desenvolvida por W. Ross Ashby a partir de seus estudos sobre a cibernética (ASHBY, 1970), aponta que problemas complexos requerem soluções complexas.

Portanto, “todo sistema deve, da maneira mais próxima possível, encarar suas incertezas ambientais com um montante equivalente de informação se quiser permanecer viável”(DE RAADT, 2000, p. 23, tradução nossa). Para Lombardi, não basta aqui um esforço de compilação de ideias e teorias com pouca fundamentação teórica e ontológica, “precisamos de um modelo e mecanismo que traga unidade dentro da diversidade”(BASDEN; LOMBARDI, 1997, p. 477, tradução nossa). Do mesmo modo, Leff argumenta que:

A “logística” do desenvolvimento sustentável vem sendo aplicada como uma ars combinatória, numa tentativa de reintegrar partes dissociadas e fragmenta- das do corpo social, sem um fundamento teórico sobre as raízes ontológicas, epistemológicas e éticas dessa crise da humanidade (LEFF, 2006, p. 348).

Esta integração disciplinar requer, portanto, um autoconhecimento do conhecimento científico em que pese a compreensão da razão que reconheça a existência de fenô- menos “que são ao mesmo tempo irracionais, racionais, a-racionais ou suprarracionais”(FLORIANI, 2006, p. 71). Essas questões caracterizam a necessidade de teorias que viabilizem não só um diálogo disciplinar, mas de saberes, considerando-se que podem incluir e mesmo transcender o conhecimento disciplinar. Uma vez que a sustentabilidade também está relacionada a um “problema do conhecimento”(LEFF, 2006, p. 288), epistemologias fragmentárias e assentes em velhas dicotomias como sociedade/natureza e ciência/valores precisam necessariamente ser superadas. Para Edgar Morin:

O problema da complexidade tornou-se uma exigência social e política vital no nosso século: damo-nos conta de que o pensamento mutilante, isto é, o pensamento que se engana, não porque não tem informação suficiente mas porque não é capaz de ordenar as informações e os saberes, é um pensamento que conduz a acções mutilantes (MORIN, 1983, p. 14).

Segundo Leff, “a partir dos anos 1960, a interdisciplinaridade e as teorias de sistemas apareceram como novas metodologias para articular um conhecimento fracionado do mundo”(LEFF, 2006, p. 347). Sachs afirma que o tratamento da questão ambiental envolve o que ele chama de paradigma do biocubo, bio-bio-bio, ou seja, requer uma abordagem holística e interdisciplinar que procura integrar saberes presentes na rela- ção biodiversidade-biomassa-biotecnologia (SACHS, 2002, p. 33), noção que apenas confirma o desafio epistemológico envolvido. Pesquisando a questão do diálogo de saberes, Basarab Nicolescu observa que as ciências vivem num “processo de babelização”(NICOLESCU, 1999, p. 44, grifo nosso), que dificulta sobremaneira “um físico teórico de partículas dialogar seriamente com um neurofisiologista, um matemático com um poeta, um biólogo com um economista, um político com um especialista em informática”(NICOLESCU, 1999, p. 44). Segundo ele, foi essa necessidade de laços entre as disciplinas que deu à luz, na metade do século XX, a pluridisciplinaridade, que proporciona o estudo de um objeto específico de uma disciplina por várias outras, e a interdisciplinaridade, cuja proposta focaliza a transposição de métodos entre discipli- nas. O problema é que em ambas permanecem as barreiras disciplinares, por isso ele propõe o que chama de transdisciplinaridade, que define da seguinte maneira:

Como o prefixo ’trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 1999, p. 46, grifo nosso).

De modo geral, há atualmente diversos autores que reconhecem, a seu modo, a importância da transdisciplinaridade para a abordagem de temáticas relacionadas com a sustentabilidade (HADORN; POHL; SHERINGER, 2009; LEAVY, 2011, p. 49–50). No Paraná, a noção de “olhar transdisciplinar”(ITCG, 2008, p. 41) já é utilizada, pelo menos como terminologia que compõe a proposta de abordagem do ITCG à “complexidade da dinâmica fundiária e agrária brasileira”(ITCG, 2008, p. 41). Todavia, de modo geral, assim como ocorre com a ideia de sustentabilidade, ainda não há consenso quanto a sua definição e estratégias de operacionalização (HADORN; POHL; SHERINGER, 2009).

Intradisciplinaridade

Como vimos anteriormente, a fragmentação de saberes apresenta-se como um grande obstáculo à construção conjunta de conhecimento; o problema é que este fenômeno também ocorre dentro das fronteiras disciplinares. A sociologia, por exemplo, oferece uma miríade de métodos, teorias, conceitos, categorias de análise, que se estabelecem em meio a relações de tensão, contradição, complementação, sobreposição, negação.

Em muitos casos, o que se observa é que há pouco diálogo entre as diversas subdisciplinas sociológicas, ou seja, há pouca intradisciplinaridade. Eis aqui uma ques- tão de suma importância e que parece ser ainda pouco explorada. Como o tratamento de questões relacionadas com a ideia de sustentabilidade requer a utilização de abordagens orientadas para a transdisciplinaridade, o exercício da intradisciplinaridade apresenta-se como um caminho frutífero na busca por estratégias de construção da própria transdisciplinaridade na medida em que o estabelecimento de inter-relações entre diversos elementos analíticos disciplinares pode viabilizar a construção de modelos críticos mais plenos. Afinal, não faz muito sentido buscar a construção de modelos analíticos complexos envolvendo o diálogo entre disciplinas que encontram barreiras que dificultam o próprio diálogo interno.

Assim, se o diálogo entre e para além das disciplinas é salutar para a busca de estratégias de construção e manutenção da sustentabilidade, a mesma postura precisa ser adotada internamente. Obviamente, a superação das incompatibilidades epistemológicas em muitos casos não é possível, mas o caminho para a construção do diálogo é válido per se e pode nos brindar com a descoberta de conceitos compatíveis que podem ser utilizados para compor instrumentos analíticos mais complexos e que, com efeito, contribuam para a construção de uma transdisciplinaridade mais rica, apta a lidar com problemáticas cujo tema central seja a construção da sustentabilidade socioambiental.

Questão das Origens

A proposta do diálogo de saberes, considerada principalmente desde a pers- pectiva da transdisciplinaridade sem desconsiderar a intradisciplinaridade, traz em seu corolário a questão da unidade do conhecimento, que por sua vez se relaciona, em última instância, com outro debate – ao mesmo tempo, importante, complexo e delicado que trata da origem da diversidade e coerência presente na realidade. Este debate, todavia, não é recente. Por volta de 1897, por exemplo, o teólogo e filósofo holandês Abraham Kuyper já argumentava:

Suponha que você tenha sido bem-sucedido em obter um conhecimento ade- quado de todas as partes do cosmos, o produto destes resultados não te daria um conhecimento apropriado do todo. O todo é sempre algo diferente da com- binação de suas partes. Primeiro por causa da relação orgânica que mantém as partes unidas; mas muito mais por causa das questões completamente novas que a combinação do todo apresenta: questões quanto à origem e o fim do todo; questões quanto às categorias que governam o objeto em sua reflexão na sua consciência; questões quanto ao ser absoluto, e quanto ao que o não-cosmos é (KUYPER, 2008, p. 80, tradução nossa, grifo nosso).

Deste modo, uma compreensão mais acurada do todo na sua relação com as partes, e que envolve, podemos inferir, o próprio esforço de fundamentação de um diálogo de saberes a partir da noção de transdisciplinaridade, evoca também questões acerca da própria origem da realidade e sua diversidade, tocando igualmente em propostas científicas e crenças religiosas, apontando, mais uma vez, para a relevância da religião na discussão de questões relacionadas com a sustentabilidade. Isso aumenta, ainda mais, a complexidade envolvida. Mais recentemente, a importância da questão das origens também foi contemplada por Edgar Morin. Segundo ele, a questão da cosmogênese apresenta-se como “questão-chave da génese do método”(MORIN, 1977, p. 48).

Implicações metodológicas

Abordaremos agora algumas implicações metodológicas importantes relaciona- das com a ideia de sustentabilidade.

Modelo para a sustentabilidade

Os pesquisadores Peter S. Brandon, professor emérito da Universidade de Salford na Inglaterra, e Patrizia Lombardi, da Universidade Politécnica de Torino na Itália, desenvolveram um modelo de avaliação de projetos no ambiente urbano em termos de sua sustentabilidade. Para tanto, eles fundamentaram-se na Teoria das Esferas Modais desenvolvida por Herman Dooyeweerd, assim conseguiram viabilizar um método de avaliação capaz de integrar e harmonizar inclusive elementos presentes em outras propostas metodológicas. Uma vez que a proposta da Teoria Modal se baseia justamente na tentativa de compreensão dos aspectos presentes na realidade, parece ser possível incluir sistemas de classificação diversos, elaborados em outros métodos, integrando-os aos aspectos modais formando um modelo avaliativo comum. Neste caso, a Teoria Multimodal funciona como uma meta-teoria. Eles deixam claro que tal proposta constitui um projeto de escala maior, que eles abordam apenas de forma seminal e com o intuito de lançar bases para futuros desenvolvimentos. Uma das perguntas que guia tal investigação é “como criar uma estrutura de conhecimento e pensamento que nos permita desenvolver um vocabulário comum que todos os participantes no desenvolvimento sustentável possam possuir e para o qual eles se sintam capazes de contribuir”(BRANDON; LOMBARDI, 2005, p. p.vi, tradução nossa), uma pergunta cara também para nossa investigação.

Isto posto, eles apresentam alguns princípios que devem guiar o processo de desenvolvimento de métodos de avaliação da sustentabilidade de modo que possam ser utilizados de forma mais eficaz. Eis os princípios:

Holístico: Devem abranger todos os aspectos essenciais necessários para estabe- lecer o desenvolvimento sustentável; Harmonioso: Devem procurar equilibrar ou ser usados para equilibrar os critérios sobre os quais o desenvolvimento sustentável deve ser julgado; Formação de hábitos: Devem ser uma ferramenta natural para todos e incentivar bons hábitos; Útil: Eles devem ajudar no pro- cesso de avaliação e não confundir as questões por maior complexidade ou conflito; Descomplicados: Devem ser fáceis de utilizar por um grande número de pessoas sem necessidade de uma formação extensiva, a não ser que sejam utilizados por especialistas e, mesmo assim, os resultados e suas limitações precisam ser de fácil explicação; Esperança: Eles devem apontar para uma pos- sível solução e não deixar os usuários em um estado em que pareça não haver respostas; Humano: Devem buscar soluções que, por sua natureza, ajudem no desenvolvimento de seres humanos sem dor, sofrimento ou ansiedade indevida (BRANDON; LOMBARDI, 2005, p. p.18,grifo nosso, tradução nossa).

Para alcançarem seu objetivo, Brandon e Lombardi avaliam diversos atores, indicadores e questões relacionadas com a sustentabilidade do meio urbano, observando inclusive o próprio desenvolvimento das propostas de delineamento do conceito de sustentabi- lidade apresentadas em diversos congressos internacionais (BRANDON; LOMBARDI, 2005, p. p.1-25, tradução nossa). Na sequência, são apresentadas algumas aborda- gens utilizadas no processo de avaliação da sustentabilidade, como o _Natural Step _- desenvolvido por Karl-Hendrick Robert, que focaliza uma abordagem que privilegia a manutenção dos processos naturais da terra; o conceito de capital comunitário - ela- borado por Maureen Hart, que parte do princípio de que os capitais institucionais e financeiros, humanos e culturais, bem como os naturais precisam ser observados

Figura 2.1: Modelo Para a Sustentabilidade.

Fonte: Adaptado (BRANDON; LOMBARDI, 2005, p. 97)

É importante deixar claro que não faz parte do escopo desta pesquisa dar conta de todos os aspectos apresentados na figura anterior este trabalho hercúleo seria objetivo de trabalho específico e tarefa para uma equipe transdisciplinar. No que tange os aspec- tos relacionados com a sustentabilidade, eles serão tomados em nossa investigação como indicativos, como possível orientação no processo de identificação de fatores presentes nos itens selecionados na coleta de dados. Neste sentido, vale dizer também que os termos apresentados de modo algum esgotam as possibilidades de fatores relacionados com a ideia de sustentabilidade, de modo que o próprio processo de investigação poderá trazer à luz novos fatores que possam ser relacionados aos aspectos multimodais. Isto posto, a partir dos aspectos modais apresentados no quadro anterior, diversos fatores relacionados com a ideia de sustentabilidade podem ser identificados com maior facilidade, por exemplo - adaptado de Lombardi (1999):

Modalidades Fatores
Quantitativo Densidade demográfica; População; Quantidade de recursos disponíveis; Número de espécies e seus níveis populacionais; estatísticas censitárias oficiais.
Espacial Design (layout); Morfologia; Área construída; Localização; Proximidade; Forma do terreno – plano; montanhoso; etc.; Áreas vizinhas; Área urbana; Área distrital; Área de restinga; Manguezal; Orla; Áreas de proteção ambiental.
Cinemático Estradas; Ciclovias; Linhas férreas; Passeios para pedestres; Es- tacionamentos; Tráfego de veículos e embarcações; Movimentação de animais selvagens; Mobilidade; Acessibilidade; Movimentação de turistas; Dinâmica Territorial.
Físico Energia para atividade humana; Energia para atividade biótica; Energias convencionais (Petróleo e Gás) e alternativas; Ambiente físico; Pedologia; Geologia; Climatologia; Recursos Hídricos; Materiais de construção; Componentes; Edifícios; casas; Assentamentos; Povoados.
Regulatório Equilíbrio ecológico.
Biótico Conservação de alimentos; Moradia; Ar e qualidade do ar; Água e qualidade da água; Higiene; Áreas verdes; Poluição; Qualidade do solo; Biodiversidade; Diversidade e Qualidade de habitats; Resiliência do ecossistema (habilidade de recuperação contra desequilíbrios); Saúde e serviços de saúde; Hospitais; Academias de ginástica.
Sensitivo Sentimentos relacionados ao viver no local; Sensação de bem-estar; Conforto; Aptidão física; Ruídos; Segurança; Privacidade.
Fiducial Visão de futuro; Valores e Estilo de Vida; Aspirações; Ideais; Convicções; Ideologias; Crenças; Instituições religiosas.
Histórico Histórico do processo de urbanização; Capacidade criativa da co- munidade; Criatividade em meio a conflitos; Patrimônio histórico e cultural; Tecnologias disponíveis; Museus; Arquivos.
Informacional Facilidade e meios de comunicação social; Qualidade da comu- nicação (ambiente de confiança); Veiculação de notícias de forma clara na comu- nidade (permitindo que os habitantes saibam com clareza acerca de questões relevantes); Informação; Capacidade de articulação e expressão; Monumentos; Símbolos; Propaganda; Mídia.
Epistêmico Qualidade dos instrumentos de planejamento e avaliação; Capaci- dade de compreensão de questões relevantes para exercício da cidadania; Acesso à educação; Serviços educacionais; Pesquisa; Nível de educação; Analfabetismo funcional; Saberes autóctones.
Social Interação e relações sociais; Recreação; Ambiente social; Coesão; Pluralidade; Competitividade; Colaboração; Conflitos; Estruturas de autoridade; Clubes; Sociedades; ONG’s.
Econômico Modelo Econômico; Uso do solo; Utilização de recursos renováveis; Uso de recursos não renováveis; Estratégias de reciclagem; Controle financeiro; Eficiência; Instituições financeiras; Acesso a Crédito; Escritórios; Bancos; Co- mércio; Indústrias; Investimentos
Operacional Trabalho; Reciclagem; Administração Pública.
Jurídico Zoneamento; Leis e legislação; Regulamentação de propriedades; Geopolítica; Posse de propriedades; Regulamentação e políticas públicas; Contratos; Direitos; Deveres; Injustiça; Justiça; Democracia; Participação; Tribunais; Órgãos executivos; Instituições legais; Estrutura política
Estético Beleza cênica; Arquitetura e design; Estilo arquitetônico; Decoração; Artesanato; Galerias de arte; Teatros; Cinemas
Ético Conduta interpessoal; Boa vontade; Solidariedade; Transparência; Apoio mútuo; Equidade; Saúde da família; Voluntariado; Corrupção; Comprome- timento moral; Cuidado; Caridade; Outridade; Valorização da tradição local; Respeito; Tolerância; Reciclagem; Lealdade à comunidade; Nível moral.

Tais fatores podem ser identificados em contextos reais de pesquisa. Mas, é importante ressaltar, eles também podem ser utilizados também como indicativos, auxiliando no processo de identificação de fatores reais presentes na conjectura investigada7.

Também há situações em que um mesmo fator pode ser relacionado a mais de um aspecto. O fator exploração petrolífera, por exemplo, pode ser compreendida como algo que envolve um conjunto de atividades laborais altamente qualificadas (aspecto operacional), como atividade que geradora de impactos ambientais (biótico), ou, ainda, um meio para geração de energias convencionais (físico). Em todos os casos, o que determina a qualificação é o foco privilegiado pelo pesquisador, que neste caso deve explicitar suas escolhas por meio de um processo que veremos mais adiante, as “Trilhas de Auditoria”.

Retóricas da sustentabilidade na América Latina

Há, ainda, outro ponto importante que precisa ser abordado em relação a metodologias aplicadas ao estudo da sustentabilidade. Diz respeito ao que o sociólogo brasileiro Dimas Floriani chama de Retóricas da Sustentabilidade. Com base em seus estudos, Floriani observa que não há discurso hegemônico presente nas investigações e debates que envolvem a ideia de sustentabilidade, uma vez que os diversos agentes envolvidos em todas as partes destes processos produzem seus próprios discursos.

Assim, “[…] cada agente é capaz de situar-se em diferentes campos discursivos segundo sua capacidade de identificar-se com seu próprio sistema retórico”(FLORIANI, 2018, no prelo). Tomando especificamente a América Latina como contexto, Floriani pontua a existência de duas retóricas, uma hegemônica e outra de contestação. A primeira fundamenta-se nas agências internacionais dos Estados-Nação, envolvendo seus agentes econômicos, com seus sistemas de mercado, e políticos. Aqui entram os discursos ofici- ais, que em grande parte buscam a manutenção do sistema vigente, que pode inclusive ser representado nos chamados objetivos do milênio.

As retoricas de contestação, por outro lado, envolvem organizações e movimentos sociais nacionais e transnacionais, fundamentadas em atores, saberes e visões de mundo que procuram se posicionar contra o atual modelo capitalista. Estas diferentes retóricas, de modo geral, refletem diferentes mecanismos baseados em intertextualidades distintas, como explica Floriani:

[…] os sentidos que são atribuídos à sustentabilidade vão sendo elaborados e reelaborados por complexos sistemas interpretativos, apoiados nas práticas desenvolvidas pelos diversos agentes (estatais, programas e políticas públicas nacionais, agências, tratados e projetos internacionais financiados, pesquisas acadêmicas, intervenção profissional, social e política de organizações não- governamentais e de movimentos sociais) (FLORIANI, 2018, no prelo).

Esta formação discursiva, portanto, é também resultante de uma pragmática do discurso, que a partir de elementos discursivos e semânticos forma diferentes discursos. Com base nesta reflexão, percebemos que não estamos tratando apenas de discursos diferentes, mas diferentes visões de mundo:

[…] o campo dos debates e dos embates sobre concepções do socioambien- talismo e dos conflitos sociais oriundos de problemas de apropriação, uso e exploração dos recursos naturais e dos impactos gerados no ambiente (natural e social) tem como pano de fundo o confronto entre a ciência normal e os demais saberes e práticas da natureza (FLORIANI, 2018, no prelo).

No final das contas, o que determina o conteúdo e a direção das retóricas, e práticas, são as diferentes cosmovisões que as fundamentam. Com efeito, estamos tratando de diferentes concepções de ciência e, de modo mais abrangente, de saberes diversos. Neste sentido, a noção de sustentabilidade que fundamenta deve ser explicitada.

Também por isso é que foram criadas as Trilhas de Auditoria, como veremos mais adiante, e que procuram apresentar como foram tomadas as decisões, e realizadas abordagens, nas diferentes etapas do processo investigativo. Além disso, explicitamos de uma vez que partimos do seguinte pressuposto metodológico de que a sustentabilidade de um dado sistema socioambiental está diretamente relacionada com a preservação da integridade de cada um de seus subsistemas. De acordo com o PSM, quando um subsistema por algum motivo compromete outros é possível que a sustentabilidade de todo o sistema socioambiental envolvido seja afetada em longo prazo (DE RA- ADT, 2002, p. 67–68).

Isto posto, é necessária a identificação de fatores presentes nos aspectos éticos, estéticos, jurídicos, operacionais, econômicos, sociais, epistêmicos, informacionais, históricos, fiduciais, sensitivos, bióticos, regulatórios, físicos, cinemáti- cos, espaciais e quantitativos da realidade. Todos estes aspectos, serão abordados mais adiante a partir da fundamentação filosófica desenvolvida por Herman Dooyeweerd e Donald e Veronica De Raadt, que dá azo ao que passa a ser conhecido como Pensamento Sistêmico Multimodal.

À guisa de uma definição

De modo geral, sustentabilidade envolve a habilidade de um determinado as- pecto de manter-se indefinidamente em um determinado estado. Assim, é possível falar-se sustentabilidade econômica, quando este aspecto possui habilidade para supor- tar um definido nível de produção econômica indefinidamente. Uma sustentabilidade social, por sua vez, se fundamentaria na habilidade de um sistema social funcionar indefinidamente a partir de um nível de bem-estar social indefinidamente.

Poderíamos considerar, ainda, uma sustentabilidade ambiental como a habilidade de tal sistema em manter as taxas de renovação de seus recursos de modo a perpetuar-se (MCKENZIE, 2004; WEINGAERTNER; MOBERG, 2014). Estes três elementos formam o que veio a ser conhecido como os Três Pilares da Sustentabilidade (THWINK, 2014). Mas, a partir da consideração dos aspectos modais oferecidos pelo PSM, logo percebemos que outros aspectos podem ser incorporados de modo que uma noção mais plena de sustentabilidade possa ser considerada. Portanto, defendemos o pressuposto metodológico de que a sustentabilidade de um sistema socioambiental está diretamente relacionada com a preservação da integridade de cada um dos subsistemas e inter-relações presentes envolvendo todos os aspectos (quantitativos, jurídicos, éticos).

Portanto, quando um subsistema, por algum motivo, compromete outros (na medida em que suas operações não se conformam às qualificações dadas nos núcleos de sentido) é possível que a sus- tentabilidade de todo o sistema socioambiental envolvido seja afetada em longo prazo (DE RAADT, 2002, p. 68–68). Segundo os pesquisadores Andrew Basden e Patrizia Lombardi, a sustentabilidade pode ser considerada da seguinte forma:

Nossa proposta é a de que todos os aspectos sejam importantes para a verda- deira sustentabilidade a longo prazo de qualquer ambiente construído e de sua comunidade. Pode ser definido, portanto, do seguinte modo. A sustentabili- dade no ambiente construído é obtida quando os temas a ela relacionados agem de acordo com as leis de todos os aspectos de forma integrada e equilibrada no longo prazo, e as ameaças à sustentabilidade ocorrem por ir contra ou ignorar as leis de um ou mais aspectos. Por exemplo, se as pessoas de uma área estão funcionando mal no aspecto econômico, ao desperdiçarem recursos, então a sustentabilidade é baixa. Se as pessoas estão funcionando mal no aspecto biótico, por exemplo, pelo manejo ineficiente do lixo humano, as funções da vida podem ser ameaçadas e a sustentabilidade novamente colocada em risco.

Com aspectos posteriores, o efeito provavelmente será mais longo e mais sutil. Por exemplo, se as pessoas de uma região não possuem visão, nem compromisso com o lugar em que vivem - que são elementos do aspecto fiducial - então o padrão moral provavelmente será baixo, o que afetará novamente o funcionamento de todos os outros aspectos (BASDEN; LOMBARDI, 1997, p. 481, tradução nossa). Assim, com vistas a uma conceituação mais ampla, podemos dizer que a sustentabilidade é a habilidade que um sistema complexo deve alcançar para manter a harmonia entre os diversos fatores, dimensões e aspectos nele presentes indefinidamente. Cada aspecto neste caso, seja social, jurídico, econômico, biótico, deve contemplar algumas especificidades.

Notas


  1. Para um painel com uma relação das principais conferências realizadas sobre desenvolvimento sustentável, e suas principais deliberações, veja (BRANDON; LOMBARDI, 2011, p. 7–11). ↩︎

  2. Leff define a outridade como atitude de reconhecimento e respeito pelo outro, o absolutamente outro. Neste caso, o próprio ambiente é percebido como um outro complexo, composto pela ordem tanto do real quanto do simbólico (LEFF, 2006, p. 293). Este conceito de outridade baseia-se na noção de alteridade desenvolvida pelo filósofo Emanuel Lévinas. ↩︎

  3. Fernandes 2003, por exemplo, apresenta uma breve consideração sobre a cultura indígena Kaingang e o modo como sua relação com a natureza é determinada por sua mitologia. Leff também cita princípios fundamentados em crenças religiosas compartilhados pelas etnias Mapuche, Guarani, Maia (LEFF, 2009, p. 306). ↩︎

  4. Pressupomos aqui que uma crença na não existência, ou irrelevância, de Deus é qualitativamente indistinguível de uma crença religiosa, constituindo-se, com efeito, numa crença cujo conteúdo é negativo. ↩︎

  5. O tratamento teórico da religião nas ciências sociais, entretanto, envolve alguns desafios. No caso de uma antropologia da religião, por exemplo, há logo de início uma questão metodológica importante, afirma a pesquisadora brasileira Rita Segato. Ao lançar mão de metodologias que procuram relativizar a experiência religiosa, na tentativa de compreendê-la, a antropologia afasta-se de seu objeto de pesquisa na medida em que a crença religiosa é percebida e vivida como um absoluto pelos sujeitos pesquisados Segato (1992). ↩︎

  6. Mesmo esforçando-se para desenvolver uma nova perspectiva sociológica, o próprio Luhmann parece não ter conseguido desvencilhar-se da limitação analítica presente na dicotomia sociedade/natureza. Segundo ele, “tudo o que se relaciona com os problemas ecológicos se reduz à comunicação”(LUHMANN, 2011, p. 99). ↩︎

  7. Esta lista, de modo algum, é exaustiva ou se apresenta como um objetivo a ser alcançado em nosso trabalho de investigação. ↩︎