Motivos-Base e a questão ambiental

A visão de Natureza no Mundo Grego

Partindo da compreensão da influência do Motivo-Base Matéria-Forma no mundo grego antigo é possível dizer que a visão grega de Natureza é essencialmente deificada. Segundo o historiador holandês da ciência R. Hooykaas, para os pensadores pré-socráticos o mundo era basicamente um organismo vivo, fonte divina de todos os seres, incluindo os deuses. Ao analisar os escritos de Tales (séc. VI a.C.) e Heráclito conclui:

Estes filósofos encaravam a própria natureza como uma divindade, um ser eterno em processo de contínua auto-geração. Algumas vezes, eles a identificavam como os deuses olímpicos. Dessa maneira, estes deuses, que se originavam dos espíritos que animavam as árvores, os lagos e os rios, reassumiam seu caráter original, numa forma racionalizada. Já Ésquilo afirmava: “Zeus é o éter, Zeus é a terra, Zeus é o céu, é tudo e tudo o que está acima disso”. Assim, “a filosofia pode ter sido a morte dos antigos deuses, mas era, ela própria, uma religião” (apud W. Jaeger, Die theologie der frühen griechischen denker, Stuttgart, 1953, p.87) (Hooykaas, 1988, p.18).

Da mesma forma, para Platão o universo visível era compreendido como um ser divino onde o reino das Ideias era a própria imagem do deus supremo sendo sol, lua, terra, estrelas deuses visíveis criados (Hooykaas, 1988, p.21). O próprio termo Physis foi por ele empregado como “a alma do mundo”, de maneira similar à sua compreensão do reino das Ideias (Hooykaas, 1988, p.21). Não obstante, para Aristóteles, cuja filosofia tendeu a enfatizar as coisas visíveis, a tendência fundamental era a mesma, a saber:

Aristóteles falava sobre a natureza de uma maneira antropomórfica. Para ele, a natureza “faz coisas” (demiourgein), ou, como afirmava, “a natureza faz tudo com um determinado propósito” (_apud _Aristóteles, De part animal, i. 1, 641 b). Quanto mais próximas estiverem as Formas da Forma suprema, tanto mais próximas estarão da divindade; por conseguinte, as esferas celestes, as estrelas e os planetas são seres divinos, inteligentes e eternos, imperecíveis mesmo como indivíduos. Na opinião de Aristóteles, os deuses olímpicos resultaram “de uma concepção errônea destes antigos poderes divinos da natureza” (_apud _Aristóteles, Metafísica, xii. 8, 1074, b) (Hooykaas, 1988, p.23).

Ainda no pensamento dos estoicos a influência do Motivo-Base Matéria-Forma pode ser percebida, segundo Hooykaas eles desenvolveram uma concepção dualista do mundo, onde “a matéria bruta, ousia, é informada pelo princípio racional e espiritual do pneúma, aither ou fogo”, sendo a natureza a própria “alma e o intelecto do mundo” sendo identificada com Zeus na religião popular (Hooykaas, 1988, p.23-24).

A visão de Natureza no Motivo-Base Criação-Queda-Redenção

Dooyeweerd explica que “Deus criou o ser humano como senhor da criação. Os poderes e potenciais que Deus cobre dentro da criação devem ser descobertos pelos humanos em sua tarefa de amar a Deus e ao próximo” (DOOYEWEERD, 2003, p.30), com efeito, uma vez que nem elementos inorgânicos, plantas, animais possuem Unidade-Originária religiosa, apenas a humanidade pode tornar completa a existência temporal das coisas. Destarte, pensar na natureza sem conectá-la a humanidade eliminaria de sua existência os aspectos lógico, cultural, econômico, estético, jurídico e outros; num certo sentido, elementos inorgânicos e plantas teriam excluídos sua própria capacidade de serem vistos uma vez que a “visibilidade objetiva existe apenas com relação ao potencial de percepção visual que muitas criaturas não possuem em si mesmas” (DOOYEWEERD, 2003, p.30). Na ordem da criação a visibilidade objetiva, características lógicas, beleza, feiura e outras propriedades sujeitas a avaliação humana como o própria atividade de conceptualização, definição de padrões de beleza, atribuição de valor econômico, e outras, estão necessariamente relacionadas à percepção sensorial do ser humano, não podendo ser atribuídas a Deus o criador, uma vez que Ele relacionou todo o cosmo temporal a humanidade. O cosmo temporal encontra a sua plenitude de sentido, a realidade, através da humanidade (DOOYEWEERD, 2003, p.31).

A visão de Natureza no Motivo-Base Natureza-Graça

Dentro da perspectiva tomista os elementos inorgânicos, plantas, animais, possuem existência própria, independente da humanidade. Para os escolásticos as chamadas substâncias materiais dependem apenas de Deus para sua manutenção, assim, toda criatura luta para alcançar a perfeição e sua forma essencial é atualizada no corpo material (DOOYEWEERD, 2003, p.122), destarte:

Uma planta naturalmente luta para desenvolver sua semente à forma madura de uma planta e um animal se desenvolve em direção a sua forma madura. A perfeição natural dos seres humanos consiste no completo desenvolvimento de sua razão natural, que os distingue das plantas e animais. Sua natureza racional foi equipada com uma lei natural, racional, inata, que os urge a fazer o bem e a refrear o mal. Assim, de acordo com Tomás, a humanidade naturalmente luta em direção ao Bem. Esta concepção conflita radicalmente com a confissão Escriturística da total depravação da “Natureza” humana (DOOYEWEERD, 2003, p.123).

Com efeito, pode-se inferir que dentro desta perspectiva tanto a Natureza quanto a humanidade tenderiam naturalmente para o Bem. Tomando o Estado como comunidade natural perfeita, cuja ação naturalmente visaria ao bem estar comum, seria possível propor que sua ação promoveu a crença de que os recursos naturais seriam naturalmente preservados, ou pelo menos, que tal preocupação seria desnecessária.

A visão de Natureza no Motivo-Base Natureza-Liberdade

Para os materialistas modernos o modelo matemático adotado nas ciências naturais se constituiria numa forma de pensamento excelente, partindo deste pressuposto passaram a compreender a natureza como uma “constelação estática de partículas de matéria totalmente determinadas por leis mecânicas do movimento” (DOOYEWEERD, 2003, p.30). Mas, argumenta Dooyeweerd, falharam em não lembrar que as próprias fórmulas matemáticas, que pareciam ser capazes de alcançar a essência da natureza, pressupunham a linguagem e o pensamento humano impossibilitando tentativa de se conceituar fenômenos naturais, uma atividade lógico-teórica, a parte destes. Com efeito, não seria possível compreender a natureza sem se relacioná-la com a humanidade.

Motivos-Base e Crise Ambiental

Segundo Dooyeweerd, apenas através dos Motivos-Base é possível compreender as dicotomias e tensões presentes no pensamento ocidental, seguindo esta proposta o filósofo holandês Egbert Schuurman (1937-), professor das universidades de Delft, Eindhoven e Waneningen, elaborou uma série de estudos sobre a relação entre estes Motivos e a relação entre o desenvolvimento tecnológico das sociedades modernas e a crise ambiental. Em sua obra Reflections on the technological society (Schuurman, 1977), ele argumenta que uma vez que o pensamento filosófico não é neutro, mas religiosamente inspirado, ele exerce influência no desenvolvimento da ciência, com efeito, a tecnologia de maneira tangível projeta estas inspirações afetando positivamente, ou não, o meio ambiente e a sociedade, em suas palavras:

Apenas quando discernirmos o fundo espiritual-histórico do problema ambiental é que será possível ir além de um simples apelo a ciência e a tecnologia para evitar os perigos iminentes para um apelo que envolva as convicções religiosas do homem moderno, que afetam sua atitude com relação a natureza e a cultura (Schuurman, 1977, p.26).

Sua tese pondera que se os motivos religiosos determinam a perspectiva do homem com relação a natureza então, basicamente, a crise ambiental não é nem econômica, nem tecnológica, mas religiosa. Neste sentido, a partir da perspectiva bíblica o homem é um mordomo da criação e se vê diante da tarefa de dominar e cultivar uma natureza caída. Em contrapartida, para povos animistas a natureza deve ser apaziguada através de rituais, não havendo, portanto, nem uma ética de cuidado, pelo valor intrínseco da natureza, nem de desenvolvimento, uma vez que não pode ser explorada estrategicamente. Já na Idade Média, a natureza era vista de maneira organicista e de valor secundário, uma vez que o mais importante seria a vida por vir.

A partir da era moderna o homem passa a ser o centro de referência para todas as coisas, com efeito, a natureza começa a ser vista como uma coisa autônoma regida por leis fixas e, como tal, deve ser explorada segundo seus interesses. Assim, se por um lado ele passa a não se render mais aos caprichos da natureza, por outro ele passa a tomá-la como sua propriedade podendo ser desenvolvida, manipulada, explorada a seu bel prazer. Assim, a natureza acabou sendo reduzida ao que nela poderia ser quantificado e tecnologicamente controlado explorado e economicamente rentável. Com o passar do tempo e com o crescimento da população e da necessidade tecnológica de suprimento das demandas existentes, a fé no desenvolvimento tecnológico chega a ser naturalizada pelos cientistas modernos e é vista pela população como uma força libertadora das potencialidades do homem.

Segundo Schuurman, a partir da perspectiva propostas por Marx, em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos, a natureza adquire valor pelo trabalho do homem que por sua ação produtiva gera mais valia. Contudo, se é o homem que dá valor a natureza ela pode ser considerada erroneamente apenas como insumo de produção não possuindo valor per si.

Todavia, uma vez que na realidade empírica temporal há uma coerência inquebrável de sentidos ela não pode ser ignorada pelo homem sem que este sofra as consequências. Ora, esta fé no progresso e no próprio desenvolvimento tecnológico, tem levado a humanidade a um ponto crítico. Schuurman relembra o filósofo espanhol Ortega y Gasset ao alertar que o homem que seguir crendo apenas na tecnologia perderá seu significado. Além disso, quanto a relação normativa entre sociedade e meio ambiente, no qual está inserida, o que se observa é que “ao invés de promover a harmonia entre tecnologia e natureza e desta forma abrir a natureza de acordo com seu significado, o homem interfere na natureza de tal maneira que a devasta” (Schuurman, 1977, p.34).

De maneira geral, atualmente, o fator econômico tem sido o único critério para o desenvolvimento tecnológico e é fundamentado pela utopia na qual o homem construirá para si, e através de si, um paraíso aqui na terra. Num certo sentido, a fé na salvação tecnológica substituiu a escatologia Cristã, argumenta Schuurman, lembrando o autor suíço Donald Brinkmann, mas quando o homem perde sua referência vertical, igualmente se vê sem a horizontal, que diz respeito a este mundo e o que nele há.

Como solução, Schuurman propõe nem panteísmo, nem abandono da tecnologia, mas o retorno do homem a Deus, como Criador e verdadeira autoridade sobre todas as coisas. Uma vez mordomo da criação o homem deve prestar contas a Deus pela maneira como se utiliza dos recursos humanos e naturais colocados à sua disposição. A natureza deixa assim de ser uma coisa a ser controlada autonomamente e o homem passa a assumir sua tarefa de desenvolvê-la responsavelmente abrindo seu potencial agregando valor e não simplesmente explorando de maneira degradativa.

Finalmente, Schuurman lança um alerta crítico aos Cristãos, que na maioria das vezes se acomodam acriticamente à perspectiva materialista da realidade, muitas vezes até legitimando-a através da bíblia. Neste sentido ele propõe uma agenda Cristã frente, a tais problemas, que deve apoiar:

  • novas formas de ascetismo;
  • descentralização das indústrias;
  • fim do modo de vida consumista;
  • promoção de mudanças sociais estruturais;
  • mais eficiência nas decisões políticas;
  • reforço da consciência comunitária;
  • quebra dos grupos de elite;
  • democratização de processos de decisão;
  • e por fim, aplicação de restrições e princípios normativos ao desenvolvimento tecnológico.